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Como o São Paulo conseguiu encher Morumbi e tenta se livrar de rótulo de time de elites

Com ingressos mais baratos do que os de rivais e em estádio “menos restritivo”, torcida bate recordes consecutivos, mas ainda se vê longe do centro de decisões do clube

O Morumbi, gigante, pode dar a impressão de estar vazio mesmo em jogos com bons públicos para os padrões do futebol brasileiro. Onde cabem quase 65 mil pessoas, os 30 mil que lotariam outros estádios parecem poucos na casa do São Paulo

Mas os buracos nas arquibancadas têm sido raros por ali nas últimas temporadas. Num movimento orgânico de torcedores, e que recentemente foi incorporado como bandeira de cartolas do clube, o São Paulo tem tentado se distanciar da imagem de agremiação elitista e assumir um perfil mais popular. O estádio cheio é a cara dessa mudança.

No próximo domingo o São Paulo enfrentará o Flamengo no Morumbi, às 16h (de Brasília), e poderá comemorar pela primeira vez a conquista da Copa do Brasil – basta um empate após a vitória por 1 a 0 no Maracanã. Para isso, contará com mais de 62 mil pessoas nas arquibancadas empurrando o time.

Será um marco: o clube ultrapassará os 1.260.707 ingressos vendidos em 2022 para bater, pelo segundo ano consecutivo, seu recorde de público em uma temporada. Até o jogo de quarta, contra o Fortaleza, 1.234.975 torcedores tinham visto o time jogar como mandante em 2023.

Um feito relevante para um clube que joga num estádio que poucos anos após ser inaugurado chegou a comportar mais de 120 mil pessoas nas arquibancadas – capacidade reduzida para praticamente a metade ao longo do tempo graças a medidas e restrições de segurança e à incorporação de áreas de mais conforto, como camarotes.

Irônico, mas não inédito, foi um momento de baixa da equipe que a reaproximou da torcida.

Em 2017, com o time ameaçado pelo rebaixamento, o São Paulo teve seu melhor público dos últimos 10 anos no Brasileiro – um total de 669.328 torcedores. Desde então, não reuniu menos de 570 mil torcedores no torneio como mandante, com exceção a 2020, com os estádios fechados por causa da pandemia de Covid, e na temporada seguinte, quando grande parte dos jogos ainda foram realizados sob restrições determinadas pelas autoridades sanitárias.

– Esse projeto vem desde 2017. Naquela ocasião, o São Paulo estava prestes a ir para a Série B, e a gente conseguiu convencer o torcedor que se a gente não abraçasse o clube, o time ia cair. E que se não abraçasse nos dias de hoje, na reconstrução, a gente ia ficar afastado de muitos clubes – conta Henrique Gomes, o Baby, líder da Torcida Independente, principal organizada tricolor.

O São Paulo, então sob o comando de Dorival Júnior, se livrou do rebaixamento naquele ano. Hoje o mesmo técnico está a um empate de uma taça que o clube, com uma das maiores coleções de troféus do planeta, ainda não tem.

No último sábado, Dorival se impressionou com a escolta que o ônibus da delegação tricolor, a caminho do aeroporto para viajar ao Rio de Janeiro, recebeu de uma multidão que se aglomerou em frente ao CT da Barra Funda.

– Eu nunca havia visto isso em momento nenhum. E olha que eu já tive algumas recepções muito calorosas. Vai ficar marcado para a vida toda – afirmou o treinador, que se sentou no banco de clubes como Flamengo, Palmeiras, Cruzeiro, Atlético-MG…

Neste ano, o Morumbi teve 12 jogos com mais de 50 mil pessoas – oito deles em sequência recente quebrada apenas no duelo da última quarta, contra o Fortaleza, com pouco mais de 24 mil torcedores. Algo até então inédito na história do São Paulo.

O recorde da temporada é a semifinal da Copa do Brasil, contra o Corinthians, quando 62.093 ingressos foram vendidos – número que pode ser superado na final contra o Flamengo, domingo.

As receitas com bilheteria já são as maiores, mesmo a cerca de dois meses do fim da temporada. O São Paulo arrecadou R$ 70,5 milhões até agora – a renda de jogos como o clássico contra o Palmeiras chegou a ser usada exclusivamente para pagar salários atrasados de parte do elenco.

Ex-Soberano

A sequência de conquistas do São Paulo no começo do século, com taças do Paulista, Brasileiro, Libertadores e, o auge, o Mundial de 2005, fizeram com que o clube institucionalizasse o apelido de Soberano – que batizou dois documentários realizados na época produzidos por uma produtora em parceria com o clube.

Dirigentes não se intimidavam: alguns provocavam rivais na TV mostrando tíquetes do metrô numa alusão às conquistas regionais de adversários que viam o São Paulo, “de passaporte”, vencer troféus internacionais.

Símbolo do período, o ex-presidente Juvenal Juvêncio chegou a criticar o colega André Sanchez, do Corinthians, por supostamente ter ‘o Mobral incluso’

 – o Mobral foi um programa da década de 1970 para tentar erradicar o analfabetismo no Brasil.

Anos mais tarde, Carlos Miguel Aidar, que depois renunciou ao cargo de presidente por suspeitas de corrupção, afirmou que Kaká era a cara do São Paulo por ser ”alfabetizado” e ter todos os dentes na boca”.

– Em relação ao São Paulo se construiu uma identidade atribuída ao torcedor de que ele é um torcedor de elite, e essa forma de representação vai ser reproduzida, só que, evidentemente, entre essa forma de representação e a realidade, tem mediações de acordo com o momento – afirma o professor do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), Flávio de Campos.

– É preciso separar. O que dirigentes do São Paulo expressaram é esse escárnio de setores dominantes da nossa sociedade em relação à própria sociedade. As falas são um desrespeito com torcedores menos favorecidos do próprio São Paulo. É uma maneira de criar essa ilusão, de que os torcedores do São Paulo são da classe dominante, e evidentemente não são, tem de todas as classes sociais.

O São Paulo nasceu em 1930 quando uma ala dissidente do Paulistano se fundiu à Associação Atlética das Palmeiras, duas organizações ligadas à parcela mais abastada da cidade.

– Ali no nascedouro você tem uma presença de setores da elite paulistana. Mas na década de 1940, o São Paulo traz o maior jogador de futebol da época, o Leônidas. Abre-se um caminho para o crescimento dos torcedores superando aquela barreira de elite original – diz Campos, citando o que ele aponta como o primeiro marco de popularização do clube.

A estreia do jogador, contratado do Flamengo, atraiu cerca de 70 mil pessoas ao Pacaembu em 1942.

– A gente não tem 70 mil integrantes da elite, né? Ainda mais assistindo a uma partida de futebol. Evidentemente, o Leônidas chamou o público.

Foi, segundo o professor, também uma jogada de marketing que expôs outra faceta do clube naquele período: a proximidade com o poder político.

Leônidas, apelidado de Diamante Negro, havia, anos, antes batizado um chocolate produzido pela empresa que à época tinha Adhemar de Barros, político proeminente do estado, como um dos donos.

Barros era são-paulino e ligado à diretoria tricolor: Laudo Natel, considerado um dos principais responsáveis pela construção do Morumbi, foi vice-governador de Barros em São Paulo.

O estádio é outro marco de crescimento da torcida para o professor da USP – e repete a tabelinha com o poder público.

A região do Morumbi era praticamente desabitada quando a Imobiliária Aricanduva, também de Adhemar de Barros, loteou o local. Como chamariz, a empresa doou um terreno ao clube para a construção do Morumbi – algo semelhante tinha sido feito anos antes com o Pacaembu, com sucesso – numa área depois denominada Jardim Leonor em homenagem à esposa do político.

– A construção do Morumbi também gera um impacto na ampliação do contingente de torcedores, era o segundo maior do Brasil, perdendo para o Maracanã. Logo depois, no início dos anos 1970, o São Paulo monta um esquadrão. É campeão paulista, quebrando a série hegemônica de Santos e Palmeiras – conta Campos.

O terceiro salto é na Era Telê, período no começo dos anos 1990 em que o São Paulo, sob o comando do técnico Telê Santana, vence o Brasileiro (1991), o Paulista (1991 e 1992), a Libertadores (1992 e 1993), o Mundial (1992 e 1993) e mais uma série de campeonatos.

– Aí eu acho que é quando a torcida do São Paulo ultrapassa de fato a do Palmeiras, pelo menos aqui no estado e na cidade de São Paulo – conclui o professor.

Morumbi raiz

O movimento mais recente de reaproximação do time de seu torcedor foi interrompido em 2020, quando a pandemia de Covid obrigou os clubes a fecharem seus estádios para evitar a disseminação do vírus.

As arquibancadas vazias do Morumbi foram preenchidas por faixas produzidas pelas organizadas:

– Na pandemia, quando a gente não podia mais entrar nos estádios, tive a ideia de reviver o Morumbi raiz, colocando faixas com os cânticos do estádio, história do clube, bandeiras dos ídolos, cidades, estados, países, e o torcedor começou a se sentir responsável por tudo – lembra Baby.

Com os estádios reabertos, a torcida reocupou seu lugar. As peças até hoje decoram o Morumbi com frases de exaltação aos fanáticos, como a que cita a “Torcida Que Conduz” e a que decreta o São Paulo como “O Mais Popular”.

– Começamos a ir para o estádio mesmo com o São Paulo não ganhando. Quando paramos para pensar, vimos que o mais popular mesmo era o São Paulo Futebol Clube. A gente tem setor popular, todas as classes podem entrar no estádio – completa Baby.

A construção de uma estação de metrô próxima ao estádio também ajudou – construído na década de 1960, o Morumbi tem poucas vagas de estacionamento e acabou engolido por um bairro residencial, como previsto no plano original, o que tornou mais complicado o acesso ao local.

Entregue em 2018, a estação São Paulo-Morumbi fica a cerca de 10 minutos de caminhada do estádio. De acordo com a ViaQuatro, concessionária da Linha 4 do Metrô, a estação chega a atender 60 mil pessoas em dias de jogos, o triplo da média em dias úteis, que é de cerca de 20 mil passageiros.

– O que está acontecendo com relação às outras arenas é que o Morumbi é menos restritivo. Ele é menos gentrificado. Não que os valores sejam plenamente acessíveis, mas é menos inacessível do que as arenas de Palmeiras e Corinthians – diz o professor Flávio de Campos.

Com 64 mil lugares e com um custo de manutenção menor do que os estádios de Corinthians e Palmeiras, por exemplo, o São Paulo tem maior flexibilidade para definir o preço dos ingressos.

Dados do Espião Estatístico mostram que o São Paulo, com frequência, pratica valores mais baixos, em média, do que Flamengo, Corinthians e Palmeiras, os outros três clubes de maiores torcidas do país – os gráficos abaixo têm o Palmeiras zerado em 2012, ano em que a equipe disputou a Série B, e os dados de 2023 são de jogos até a 22ª rodada do Brasileiro.

– Isso vai modificar o tipo de torcedor, a gestualidade desse torcedor, a maneira como esses torcedores se comportam. Nas arenas de Palmeiras e Corinthians há um comportamento de classe média, que muitas vezes brigam porque o torcedor da frente está de pé. Imagina você assistir uma partida decisiva e ficar sentado, só se levantar no gol? – questiona Campos.

O São Paulo, há alguns anos, definiu setores de preços populares para o Morumbi, com ingressos que geralmente custam R$ 30.

O clube também reformulou seu programa de sócios-torcedores. Os membros podem comprar ingressos com desconto que partem de 50% e chegam a 80%. O plano Diamante prevê entradas a valor fixo de R$ 0,30 para o titular – a mensalidade, porém, é de R$ 200.

Em junho de 2021, pouco depois de o programa ser relançado, eram cerca de 26 mil sócios. Após o São Paulo bater o Corinthians na semifinal da Copa do Brasil – num movimento de demanda pelas entradas para a final, já que sócios-torcedores têm preferência na compra de ingressos – o programa alcançou 63.900 associados, número hoje um pouco menor, próximo a 62.900.

Para a decisão de domingo, entretanto, os preços foram reajustados em até 300% com relação ao jogo contra o Corinthians, até então o de maior demanda na temporada.

Uma política diferente daquela adotada quando o São Paulo disputou a segunda final sob o comando da atual diretoria – a primeira com presença de torcedores no estádio, já que o título estadual de 2021 foi comemorado sob os efeitos da pandemia de Covid.

Na decisão do Paulista de 2022, contra o Palmeiras, o setor popular teve preço em R$ 30. O setor mais caro, o de cadeiras especiais, foi vendido a R$ 300. Contra o Flamengo, os mesmos setores foram vendidos respectivamente a R$ 200 e R$ 1.500. As entradas da Copa do Brasil estão esgotadas.

A disputa pelo terceiro lugar

Criado anos depois de seus maiores rivais locais – o Corinthians é de 1910, o Palmeiras de 1914 – o São Paulo disputa com o time da Zona Oeste paulistana o posto de terceira maior torcida do Brasil – Flamengo e Corinthians, nessa ordem, não têm suas posições ameaçadas, por ora.

O Datafolha, um dos principais institutos de pesquisas do país, inclui perguntas sobre os times de preferência da população em alguns de seus levantamentos ao menos desde 1993. Nesse período, São Paulo e Palmeiras já trocaram de posição algumas vezes.

No mais recente, divulgado em agosto, aparecem empatados: 7% numa amostra de 7.597 entrevistas, em pesquisa com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Nessa série de pesquisas, o São Paulo chegou a seu ápice, 9%, em 2008 e 2012. Os palmeirenses nunca passaram de 8%.

As duas torcidas compartilham perfil semelhante:

Salão Nobre, uma bolha no Morumbi

A presença popular que se percebe nas arquibancadas do estádio do Morumbi não se reproduz no Salão Nobre do clube, onde conselheiros se reúnem eventualmente para decidir sobre a vida tricolor.

Ao contrário de seus maiores rivais, o São Paulo não tem eleição direta para presidente. O sistema tricolor deixa essa escolha na mão de 260 pessoas.

Nas últimas eleições do Corinthians, 2.873 pessoas participaram, enquanto 2.141 sócios votaram no pleito que fez Leila Pereira presidente

do Palmeiras. No Santos, que permitiu votação pela internet, 8.154 votos foram computados em 2020.

O sócio do São Paulo é convocado a cada três anos para votar em conselheiros. Votos que elegem menos da metade dos membros do órgão, formado por 100 conselheiros eleitos com mandato de três anos e outros 160 vitalícios, que permanecem no cargo até renunciarem ou morrerem.

Esse colegiado hoje tem 257 cadeiras ocupadas – três vagas de vitalícios estão abertas e serão preenchidas quando esse número chegar a dez. Enquanto a torcida são-paulina, segundo o Datafolha, tem 42% de mulheres, o Conselho Deliberativo tem 11 – cerca de 4%.

No começo do mês, uma proposta de tornar os sócios em eleitores no pleito para presidente foi rejeitada no Conselho por cerca de 75% dos votantes. O presidente Julio Casares foi um dos que se opôs à mudança.

Casares é candidato à reeleição neste ano, que não era prevista no Estatuto tricolor quando ele foi eleito, em 2020. Em 2022, com o empenho do cartola, os sócios aprovaram a possibilidade de um presidente ser reconduzido para mais um mandato de três anos.

A oposição, pequena, ainda não tem um nome, mas dois conselheiros disputam a candidatura: Marco Aurélio Cunha e Sylvio de Barros.

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